- De onde você é?
- De Belo Horizonte
- E como foi a tua infância?
- Ah, minha infância... Eu não
tive infância. Só isso.
- O que quer dizer isso?
- Eu não tive liberdade pra ser
uma criança normal, pra brincar... Não tive essa liberdade. Não, porque meu pai
não deixava. Aí com 14 anos eu já fui mãe, aí acabou a infância. Eu me
considero uma adolescente. Só tenho 20 anos.
(Trecho de entrevista com Alessandra - Documentário “Edifício Master”
- Eduardo Coutinho)
A fala de Alessandra nos guia a uma conversa sobre
a singularidade, essa que acompanha cada um de nós no processo particular de transformações
ao longo da vida. O desenvolvimento psicológico humano apresenta inegáveis
semelhanças interindividuais, entretanto, é na dimensão do singular, da
história individual, que o fazemos um fenômeno único e particular. Tracejamos a linha da nossa existência na
interseção entre um pontilhado e um desenho à mão livre. Para o psicólogo Jesús
Palacios, o desenvolvimento está relacionado com três fatores: “1) a etapa da
vida em que a pessoa se encontra; 2) as circunstâncias culturais, históricas e
sociais nas quais sua existência transcorre e 3) experiências particulares
privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas” (1995, p.9). Sob
essa ótica podemos acolher o discurso de Alessandra sobre a ausência de
infância. Uma adolescente, aos 20 anos de idade, mãe, que não teve infância.
Onde localizamos as etapas sequenciais do seu desenvolvimento? A resposta para
essa pergunta é a singularidade. Mas, em relação à área da educação – que é o
nosso tema de discussão –, me pergunto: quais são as oportunidades oferecidas
pela escola de que a criança possa constituir sua narrativa particular, seu
processo de desenvolvimento? Tendo em vista a organização estrutural escolar:
de turmas determinadas verticalmente – da coordenação aos alunos – e da
seriação, podemos afirmar que apenas o caráter homogêneo é abarcado pela escola?
Manuel Sarmento, no capítulo “Reinvenção do Ofício
do Aluno”, escrito para o livro “A Escola da Ponte” (2004), apresenta a
oposição entre duas perspectivas de escola tendo como base seus fundamentos filosóficos
e concepção de sujeito: a tendência desenvolvimentista e a tendência elementar.
A primeira, inspirada no pensamento de Jean Jacques Rousseau, valorizava a
livre iniciativa das crianças, suas experiências de vida e concebia o processo
do desenvolvimento infantil a partir da promoção das próprias capacidades. Por
outro lado, a perspectiva elementar baseou-se na filosofia de John Locke ao conceber
o aluno como uma tábula rasa e tinha como objetivo a transmissão do
conhecimento das disciplinas escolares. Historicamente, houve um predomínio da
tendência elementar, de caráter academicista e disciplinador. Temos, então,
nesse cenário, um adulto que ensina – transmite – e uma criança que apreende,
absorve. O olhar centrado no adulto – o suposto ponto máximo de desenvolvimento
e, logo, de competência – coloca o aluno no lugar da imaturidade, do vir a ser,
do adulto em potencial. Entretanto, existe um consenso atual na psicologia do
desenvolvimento em conceber a criança como agente ativo de transmissão e recriação
de cultura, mas que, como afirma Carvalho (2003), é raramente refletido nas
práticas pedagógicas. É nesse ponto que
se dá o impasse, a cisão entre o ser aluno e ser criança. Por um lado, a visão
de imaturidade e incompetência e por outro, a concepção de sujeito ativo e dotado
de qualidades e processos de desenvolvimento adaptativos.
Bem, chegamos então a ressaltar dois equívocos da
escola tradicional: (i) criação de turmas supostamente homogêneas e de percurso
padronizado estruturado em turmas, séries, semanas de prova e ano letivo; (ii) confusão
em sua missão: crê em transmitir conhecimento, concebendo seu aluno num “vir a
ser” incoerente com a natureza do desenvolvimento da criança. A escola da ponte,
ao transformar a organização estrutural da escola e extinguir as séries, turmas
e ano letivo, reconhece a existência de voz e poder das crianças dando-lhes
autonomia, inclusive sobre seu desenvolvimento. Através da reconfiguração da
estrutura escolar, a Escola da Ponte supera em nível concreto a ruptura
criança-aluno, promovendo a reconciliação entre ofício de aluno e ofício de
criança. O que ocorre lá é uma reinvenção da concepção de aluno por meio do
resgate da criança da tendência desenvolvimentista, ou seja, uma criança competente,
portadora de saberes e com poder decisional. Além disso, constrói um ambiente
propício para o desenvolvimento pleno de seus alunos, percebendo e permitindo a
vivência particular de cada um deles, tendo como base o valor da autonomia.
Referências
CARVALHO, A. M. A.; PONTES, F. A. R. Brincadeira é cultura. In: Brincadeira e Cultura: viajando pelo Brasil que brinca. São Paulo: Casa do Psicólogo, vol. 1, 2003, p.15-30.
PALACIOS,
J. Introdução à psicologia evolutiva: história, conceitos básicos e
metodologia. In: COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. (Orgs.) Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
SARMENTO, M. J. Reinvenção do ofício de aluno. In: CANÁRIO, R.; MATOS, F.; TRINDADE, R. (Orgs) A Escola da Ponte: Defender a Escola Pública. Porto: Profedições, 2004.
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