quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Escola da Ponte: superação de equívocos

- De onde você é?
- De Belo Horizonte
- E como foi a tua infância?
- Ah, minha infância... Eu não tive infância. Só isso.
- O que quer dizer isso?
- Eu não tive liberdade pra ser uma criança normal, pra brincar... Não tive essa liberdade. Não, porque meu pai não deixava. Aí com 14 anos eu já fui mãe, aí acabou a infância. Eu me considero uma adolescente. Só tenho 20 anos.
(Trecho de entrevista com Alessandra - Documentário “Edifício Master” - Eduardo Coutinho)

A fala de Alessandra nos guia a uma conversa sobre a singularidade, essa que acompanha cada um de nós no processo particular de transformações ao longo da vida. O desenvolvimento psicológico humano apresenta inegáveis semelhanças interindividuais, entretanto, é na dimensão do singular, da história individual, que o fazemos um fenômeno único e particular.  Tracejamos a linha da nossa existência na interseção entre um pontilhado e um desenho à mão livre. Para o psicólogo Jesús Palacios, o desenvolvimento está relacionado com três fatores: “1) a etapa da vida em que a pessoa se encontra; 2) as circunstâncias culturais, históricas e sociais nas quais sua existência transcorre e 3) experiências particulares privadas de cada um e não generalizáveis a outras pessoas” (1995, p.9). Sob essa ótica podemos acolher o discurso de Alessandra sobre a ausência de infância. Uma adolescente, aos 20 anos de idade, mãe, que não teve infância. Onde localizamos as etapas sequenciais do seu desenvolvimento? A resposta para essa pergunta é a singularidade. Mas, em relação à área da educação – que é o nosso tema de discussão –, me pergunto: quais são as oportunidades oferecidas pela escola de que a criança possa constituir sua narrativa particular, seu processo de desenvolvimento? Tendo em vista a organização estrutural escolar: de turmas determinadas verticalmente – da coordenação aos alunos – e da seriação, podemos afirmar que apenas o caráter homogêneo é abarcado pela escola?

Manuel Sarmento, no capítulo “Reinvenção do Ofício do Aluno”, escrito para o livro “A Escola da Ponte” (2004), apresenta a oposição entre duas perspectivas de escola tendo como base seus fundamentos filosóficos e concepção de sujeito: a tendência desenvolvimentista e a tendência elementar. A primeira, inspirada no pensamento de Jean Jacques Rousseau, valorizava a livre iniciativa das crianças, suas experiências de vida e concebia o processo do desenvolvimento infantil a partir da promoção das próprias capacidades. Por outro lado, a perspectiva elementar baseou-se na filosofia de John Locke ao conceber o aluno como uma tábula rasa e tinha como objetivo a transmissão do conhecimento das disciplinas escolares. Historicamente, houve um predomínio da tendência elementar, de caráter academicista e disciplinador. Temos, então, nesse cenário, um adulto que ensina – transmite – e uma criança que apreende, absorve. O olhar centrado no adulto – o suposto ponto máximo de desenvolvimento e, logo, de competência – coloca o aluno no lugar da imaturidade, do vir a ser, do adulto em potencial. Entretanto, existe um consenso atual na psicologia do desenvolvimento em conceber a criança como agente ativo de transmissão e recriação de cultura, mas que, como afirma Carvalho (2003), é raramente refletido nas práticas pedagógicas.  É nesse ponto que se dá o impasse, a cisão entre o ser aluno e ser criança. Por um lado, a visão de imaturidade e incompetência e por outro, a concepção de sujeito ativo e dotado de qualidades e processos de desenvolvimento adaptativos.

Bem, chegamos então a ressaltar dois equívocos da escola tradicional: (i) criação de turmas supostamente homogêneas e de percurso padronizado estruturado em turmas, séries, semanas de prova e ano letivo; (ii) confusão em sua missão: crê em transmitir conhecimento, concebendo seu aluno num “vir a ser” incoerente com a natureza do desenvolvimento da criança. A escola da ponte, ao transformar a organização estrutural da escola e extinguir as séries, turmas e ano letivo, reconhece a existência de voz e poder das crianças dando-lhes autonomia, inclusive sobre seu desenvolvimento. Através da reconfiguração da estrutura escolar, a Escola da Ponte supera em nível concreto a ruptura criança-aluno, promovendo a reconciliação entre ofício de aluno e ofício de criança. O que ocorre lá é uma reinvenção da concepção de aluno por meio do resgate da criança da tendência desenvolvimentista, ou seja, uma criança competente, portadora de saberes e com poder decisional. Além disso, constrói um ambiente propício para o desenvolvimento pleno de seus alunos, percebendo e permitindo a vivência particular de cada um deles, tendo como base o valor da autonomia.


Referências

CARVALHO, A. M. A.; PONTES, F. A. R. Brincadeira é cultura. In: Brincadeira e Cultura: viajando pelo Brasil que brinca.  São Paulo: Casa do Psicólogo, vol. 1, 2003, p.15-30.

PALACIOS, J. Introdução à psicologia evolutiva: história, conceitos básicos e metodologia. In: COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. (Orgs.) Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

SARMENTO, M. J. Reinvenção do ofício de aluno. In: CANÁRIO, R.; MATOS, F.; TRINDADE, R. (Orgs) A Escola da Ponte: Defender a Escola Pública. Porto: Profedições, 2004. 

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